Neste Dia Mundial da Asma, a PRO RUNNERS desmistifica a ideia de quem sofre com esta patologia não pode praticar desporto... um artigo da edição #7 disponível em papel e em versão digital.

Durante muito tempo foi pensamento generalizado que quem tinha asma não devia praticar desporto, pois corria o risco de desencadear uma crise. Um ideia errónea e um mito que deve ser desfeito. A PRO RUNNERS esteve à conversa com três atletas asmáticos que encontraram na corrida um "inalador" que só lhes tem trazido melhorias e qualidade de vida.

Mariana Passos (31) e Vanda Sequeira (48) não se conhecem mas têm muito em comum. Após a primeira corrida, o que se seguiu foi uma crise de asma. Em vez de desistirem, optaram por treinar e, aos poucos, foram aumentando as distâncias até se estrearem, com sucesso, em maratona.

Nas pernas levam já centenas de quilómetros, nos brônquios uma doença inflamatória crónica e na mente a força de vontade e convicção de que não é a asma que as vai parar.

Mariana, vive em Lisboa, oriunda de uma família com diversos casos de asma. Diagnosticada aos 18 anos, a notícia não foi surpresa, até porque já há algum tempo que vinha a apresentar sintomas. Foi durante os três anos que viveu em São Paulo, no Brasil, que começou a correr, "numa época em que senti que precisava de praticar desporto para emagrecer e me tornar mais saudável. O desporto democrático, mais barato e acessível era a corrida. (risos) Lembro-me dos meus primeiros 2kms na passadeira: ia caindo para o lado! Fui aumentando, inscrevi-me numa prova de 8km, decidi ir fazer uma de 10km e depois passei para os 15kms, 21km, até fazer a maratona do Rio de Janeiro que foram os meus primeiros 42km", relembra a jovem, que atualmente treina seis vezes por semana.

Mariana Passos

Mariana tem prescrita medicação diária para a asma que vai “gerindo” em função das necessidades e dos sintomas que o seu corpo apresenta. A humidade é um dos seus principais inimigos. “Ainda na passada semana, sai para treinar com 99% de humidade e simplesmente não estava a conseguir correr. Nos dias de maior humidade não consigo manter uma respiração, os pulmões sofrem muito mais e são dias em que tenho, automaticamente, de tomar a medicação.”

Conhecer os limites parece ser um dos “remédios” para manter balanceada essa doença que, ainda assim, pode surgir quando menos se espera. É por isso que Vanda Sequeira aposta na prevenção. “Tenho de trabalhar muito mais do que as outras pessoas. Tenho um plano de treinos e não o posso falhar, porque se durante a prova algo não correr bem, não foi porque não treinei, nem porque não dei as condições certas ao meu corpo, foi porque simplesmente aconteceu e tenho de o aceitar.”

Vanda fala com a convicção de quem toda a vida foi asmática, ou seja, não conhece outra realidade. “A vantagem de ter sido diagnosticada muito pequena – aos 4 anos – foi que aprendi que tinha de me controlar e fazer a medicação. Não deixo de fazer nenhuma prova, mas tenho cuidados iniciais. Por exemplo, se sei que a prova tem uma subida na parte inicial, que é algo que me pode fazer asma, tenho de realizar um aquecimento mais cauteloso. Se a prova for numa zona fria e húmida, como as de Sintra, tenho de ter algum cuidado para ter os pulmões mais quentes quando começar. Mas não deixo de fazer nada na vida por ter asma. Analiso a situação e depois adapto-me.”

A corrida entrou na sua vida há dez anos, “por brincadeira. Começou com uma caminhada na Ponte 25 de Abril, onde fui acompanhar duas amigas que iam fazer a meia maratona e, a dada altura, pensei «e se eu experimentasse correr?». Experimentei e não correu nada bem ao princípio, mas percebi que tinha de treinar. Seguiu-se uma prova toda a correr e fui aumentando as distâncias”. Entretanto, já fez as maratonas de Atenas, Nova York, Praga, Sol da Meia Noite na Noruega e a de Sevilha.

Vanda

Habitualmente corre duas vezes por semana e ainda ao sábado e domingo, fazendo também treino funcional e yoga. Uma das corridas costuma ser na praia “para treinar pulmões, pés, e porque gosto de correr junto do mar. É muito mais difícil, especialmente no inverno. Mas não deixo de o fazer. Na prática treino 6/7 dias por semana. Quando começo a correr, preciso de aquecimento. A minha caixa toráxica, se não for treinada, mirra. Não é uma caixa que trabalhe de forma muito aberta, tenho uma respiração pouco controlada – um asmático não respira com calma, respira como consegue! Sei que, para correr, tenho de fazer aquecimentos e este pode ser de vinte minutos. Nas provas, se começar muito rápido, posso colocar tudo em causa.”

Os sintomas de uma crise, descritos por estas duas atletas, são os mesmos: o peito começa a chiar e deixam de conseguir respirar. Foi precisamente isso que também sentiu Rui Santos, triatleta de 41 anos, quando em 2018, em pleno Ironman de Vitoria-Gasteiz teve de accionar o “plano de emergência”. Após cerca de 8h de competição “tive de  recorrer à bomba de SOS”, recorda. Diagnosticado com apenas três meses, ao longo da infância Rui superou provas bem mais duras do que as que hoje em dia escolhe fazer. “Nos primeiros anos de vida estive internado por diversas vezes. Por volta dos 12, um médico aconselhou-me a fazer desporto e a partir daí comecei a melhorar bastante, não tendo crises tão frequentes. A corrida apareceu na minha vida já aos 20 e a natação também tem ajudado muito.”

Rui toma medicação preventiva todas as noites, o que faz com que “o meu treino diário não seja afectado pela asma”. Antes de entrar na água, nas provas de triatlo, não esconde que se sente “bastante ofegante, mas fui aconselhado por um médico, meia hora antes de fazer desporto ou mesmo de uma prova, a dar duas «bombadas».” O mar é o único local para onde não leva o inalador “pois tem uma actuação de cerca de duas horas”, mas de resto “a bomba de SOS vai para onde eu for.”

 Rui

O poder da mente

Desde a pandemia que Vanda passou a correr sem a bomba no bolso. “Não sei se me tornei mais afoita mas foi uma das minhas decisões de vida deixar de correr com ela. Sei onde está, em caso de necessidade, e quem corre comigo sabe qual a bomba que preciso numa emergência, mas acho que me controlo o suficiente. Se tiver uma crise de asma, paro. Era um pouco uma bengala psicológica saber que tinha a bomba comigo.”

Apesar de ser uma doença física, a parte psicológica é fundamental para o auto-controlo da asma, principalmente em momentos de crise. “Hoje já me consigo controlar muito bem”, relata Rui, mas “a força mental é muito importante e o auto-controlo fundamental. O mais importante é não entrar em pânico durante uma crise, tentar respirar o mais devagar possível.” E Mariana acrescenta “Ao início, quando não se consegue controlar, é a cabeça que nos diz «eu não consigo respirar». A cabeça comanda muito, mas ao mesmo tempo que comanda para o mau, também comanda para o bom e, obviamente, que pensar «eu tenho de controlar, eu consigo» ajuda”.

Mariana já conhece bem o seu corpo e como este reage. É por isso que, por exemplo, “nunca corro sem água. Se começo a ficar desidratada, isso afecta muito mais a asma. Costumo também correr com auriculares para ouvir música e conseguir controlar a respiração, caso contrário, se estiver a ouvir-me respirar, começo a descontrolar e só me concentro naquilo. Com música, a respiração é algo que sinto internamente e não na audição. Em fases de muitas alergias, como na Primavera, tomo sempre anti-histamínico antes de uma prova. São coisas que faço para garantir que o meu corpo não é afectado só porque passei por pessoas a fumar, ou por muitas flores…”

 Mariana 2

Vitórias diárias

Interrogados sobre se a asma, de alguma forma, os impede de fazer o que for, todos responderam que não. Vanda, que hoje em dia, divide os treinos com um emprego exigente como responsável pelos Recursos Humanos, numa multinacional, mostrou-se mesmo orgulhosa no percurso que tem traçado vivendo com esta doença. “Eu era aquela miúda que quando era pequenina, era gordinha, tinha asma, usava óculos e uma pala num olho. Era aquela menina que na ginástica ficava sentada no banco «porque ela tem asma e não pode correr». A minha força de vontade e história provam que posso correr, incluindo uma maratona, algo que seria impensável! Tenho o corpo que tenho, tenho de o aceitar e vou desafiando os limites. Lembro-me de ser miúda e ver a Rosa Mota e o Carlos Lopes correrem a maratona em Los Angeles e achar que aquilo era uma coisa extraordinária! Obviamente que não corro com os tempos deles, mas não significa que não o faça. Como referi antes, só tenho de trabalhar mais do que os outros.”

Embora hoje lide bem com a doença, Rui Santos admite que “na minha infância, em determinadas alturas, se pudesse esconder que tinha asma, escondia.” A preparar-se para o Setúbal Triathlon, o triatleta do Seixal deixa o conselho aos asmáticos que nos leem: “acima de tudo pratiquem desporto! Sempre controlado, mas façam desporto e muito desporto. Aos meus pais diziam que mudar de ares era bom, eles fizeram com que eu viajasse de avião, e tantas outras experiências. Nada me melhorou. A partir do momento em que comecei no desporto, foi aí que tudo mudou.”

Mariana 3

Para Mariana, correr “é mesmo a melhor coisa a fazer. A opinião é partilhada pela minha médica que me costuma dizer que «se não corresses, estavas muito pior porque o facto de a corrida ajudar a abrir os pulmões, deixar o ar entrar e controlares a tua respiração, faz-te realmente bem.» Tenho duas amigas que correm comigo e também têm asma. Acho que a corrida é um desporto que, principalmente ao ar livre, nos vai fazer muito melhor. É uma forma de preparar o nosso corpo para a doença que temos e que nos vai acompanhar para o resto da vida.”

Vanda Sequeira, que durante muitos anos foi seguida pelo professor Antero da Palma-Carlos – especialista de renome mundial na Imunoalergologia, falecido em 2019 – comenta que também ele a incentivava a correr. “A minha qualidade de vida em termos físicos melhorou bastante com a corrida. Sou uma pessoa que raramente se constipa, algo que me acontecia com frequência quando era pequena. Na minha opinião, a asma não deve limitar em nada a nossa vida. Acho é que as pessoas têm de conhecer o seu corpo, os seus limites e trabalharem para os superar”. E acrescenta: “acredite em si, independentemente do que os outros acreditam. Nunca ninguém acreditou que eu corresse uma maratona, nem mesmo a minha família. Quando participei com amigos na Maratona de Atenas, levei a minha filha, e das memórias mais marcantes que tenho, sou eu a chorar compulsivamente após ter passado a meta, a minha filha a levantar-me os óculos e a perguntar “Mãe, porque estás a chorar? Tu conseguiste!” Quando mais ninguém acredita em nós, temos de ser nós a acreditar!”, conclui a atleta que sonha ainda vir a fazer a Maratona de Reiquiavique, na Islândia.

 Maratona Atenas 2 Vanda

Quando não dá mais...

Mariana diz que tem “aprendido muito com a asma” e embora já tenha um auto-controlo da sua respiração durante as provas, “por vezes é mais forte e temos mesmo de parar e desistir”, o que já lhe aconteceu um par de vezes. As desistências aconteceram em provas de 10kms, uma no Brasil e outra em Cascais, “em ambas estava um tempo húmido”, recorda a atleta. “Na do Brasil eu não conseguia mesmo respirar, porque os pulmões fecharam. Em Portugal foi semelhante. Por vezes basta estar com alergias, ter tido uma semana ou com muito pó, ou com fumo, para isso descoordenar a respiração. Nos treinos é raro acontecer uma crise e não deixa de ser curioso que quando estou a treinar para uma maratona estou muito melhor da asma, não tenho crises durante três meses! Se parar de correr, preciso de pelo menos um mês de treinos regulares, para começar a respirar bem de novo! Neste momento estou a preparar a Maratona de Valência (Dezembro) e na fase em que os pulmões se estão a adaptar à corrida.”, comenta a atleta que já conta com experiências nas Maratonas do Rio de Janeiro, Curitiba, Valência, Berlim e Sevilha.

Vanda admite que nunca teve de desistir, mas já esteve quase. Depois de ter conseguido o “passaporte” para a Maratona de Nova Iorque “por sorteio, pois não tinha tempos para me qualificar”, rumou à Big Apple com a filha para correr. “É daquelas provas que vale a pena pela experiência, não tanto pela corrida, pois a logística é enorme. Levantei-me às 3h para começar a correr às 11h, tive de apanhar um barco, autocarro, Uber, tudo sozinha, naquela cidade de madrugada. Em termos meteorológicos primeiro estava muito frio, depois calor. Todas estas variáveis que, com os nervos, provocaram-me uma crise de asma. Aos 8kms, que seria onde eu deveria estar a soltar a caixa toráxica e a começar a respirar bem, não o consegui fazer. Aos 10kms não passou e tive de decidir. Tinha duas hipóteses: ou ia até onde conseguisse e quando não desse mais parava, ou parava de imediato e fazia a bomba da asma, sabendo que a correr também já não iria terminar.” Optou pela segunda opção e após a inalação da medicação, acabou por “baixar imenso o ritmo a correr, parei para tirar fotografias, mas fiz a maratona até ao fim numa versão correr/andar. No momento em que a crise de asma começa, já não dá. A pessoa que me treina a nível funcional diz sempre que sou muito cautelosa e que podia dar mais de mim nos treinos/provas, mas o meu objectivo é acabar. Prefiro não estragar tudo”, conta.

Apesar de correr com pessoas que estão a par da sua doença, tal não impede que por vezes Vanda Sequeira oiça alguns comentários. “Nos grupos de corrida dá-se muito valor aos tempos. Sei que não sou rápida e nunca o serei. As pessoas às vezes dizem que se eu treinar mais vou ser mais rápida. Ok, posso treinar mais e fazer mais séries – e as séries sim, foram algo que vieram mudar a minha velocidade e a minha caixa toráxica. Antes de uma maratona tenho sempre de fazer treinos de séries puxados, daqueles de me vir o coração à boca – mas se não fizer a prova a 5h45, é um problema meu e eu é que tenho de lidar com isso. Não me preocupo muito com o que os outros acham.”

Rui 2

Prescrição: desporto!

Estima-se que existam 150 milhões de asmáticos no mundo, mais de 600 000 em Portugal, de todas as idades. A pratica desportiva é hoje em dia consensual entre a comunidade médica e Mário Morais de Almeida, Presidente da Associação Portuguesa de Asmáticos, não tem dúvidas: “um(a) asmático(a) pode ser um campeão. Seja nas suas corridas diárias ou mesmo nas Olimpíadas. A «nossa» Rosa Mota elevou-se a ela na maior celebração que um maratonista pode alcançar. Naquele momento, levou-nos a todos com ela. E a sua asma estava presente. Nas suas vias aéreas. Tal como está em muitos de nós. Em quase 1 milhão de portugueses. E no ciclismo... E na natação… tantos asmáticos que são campeões. Por isso, porque não praticar biatlo ou triatlo…? Nas ruas, nas praias, tantos asmáticos celebram a sua vida praticando exercício físico, correndo com maior ou menor intensidade. Qual o segredo? Vontade e capacidade de alcançar resultados e ter sempre a asma controlada. Saber viver com ela e como actuar para evitar as suas manifestações.”

Entre os cuidados a ter, em algumas situações, está a “inalação de fármacos broncodilatadores e também anti-inflamatórios. Necessariamente, os programas de treino e as medidas de condicionamento das variáveis físicas associadas ao exercício, têm um papel fundamental na atenuação da resposta broncoconstritora ao exercício. Deve dar-se preferência ao tipo de treino aeróbico e dinâmico. Poderão ser úteis, por exemplo, períodos de aquecimento constituídos por múltiplos sprints (duração de 30 segundos), com 2 minutos de intervalo, realizados 30 minutos antes de uma corrida prolongada, o que permitirá aproveitar o período refratário, isto é, uma fase em que após uma redução inicial da função respiratória as quedas da mesma praticamente não ocorrem. A mesma protecção poderá ser alcançada com a prática de um período de aquecimento contínuo de cerca de 15 minutos, mas em intensidade submáxima, de até 60% da capacidade aeróbica.”

Para o também Coordenador do Centro de Imunoalergologia do Hospital CUF Descobertas, “no passado era comum pensar-se que uma pessoa com asma não deveria praticar desporto. É necessário desmistificar este conceito: o asmático, cumprindo um plano adequado de controlo da doença feito pela equipa de saúde, pode e deve participar em desportos ou outra actividade física, quer sejam aulas de educação física, corridas de lazer ou mesmo de alta competição."

Autores
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Ana Filipe