Embora se trate de uma prática muito antiga, hoje em dia correr descalço está na moda. O chamado “barefoot running” convida-nos a tirar as sapatilhas para correr, mas será que isso acarreta algum problema para os atletas? Foi isso que a PRO RUNNERS tentou descobrir.

Para nos ajudar a perceber quais as vantagens e desvantagens de praticar corrida sem qualquer tipo de calçado, estivemos à conversa com o podologista Dr. Filipe Esteves, da Clínica Doutorpé, que nos esclareceu em diversos pontos.

“Ao corrermos descalços usamos a parte média ou frontal do pé e não o calcanhar, como quando usamos sapatilhas desportivas (aumento do desempenho). Se o primeiro contacto com o solo é feito com o metatarso, as cadeias musculares ativam-se positivamente. Isso, por sua vez, fortalece os ligamentos, evita lesões e reduz o impacto nas articulações e músculos. Ao contrário do que se pensa, utilizar sapatilhas almofadadas não previne o choque do calcanhar contra o piso. Há impacto nos tornozelos, joelhos, quadril e em toda a região lombar. Os gémeos e os isquiotibiais acomodam-se melhor com os pés ao natural. Ativam-se os processos motores sensoriais pouco desenvolvidos, procedentes das terminações nervosas dos pés. Assim, estímulos ou sinais mais intensos chegam ao cérebro (estimulação cerebral). Depois o aspeto económico também é uma vantagem”, começou por enumerar os aspetos positivos de correr descalço.

“Como inconvenientes, temos menos estabilidade, o que pode causar entorses ou quedas; problemas de biomecânica, se a sua forma de correr não estiver adaptada a esta técnica; e durante a fase de «aprendizagem», desconfortos aparecerão no início, como bolhas, solavancos, atrito com o asfalto”, prosseguiu apontando as desvantagens.

O que é certo é que para alguns atletas correr descalço pode ser uma tortura, mas para outros uma forma de relaxamento. Mas será que todos podem correr descalços?

“Correr descalço pode ter alguns riscos, por isso deve haver um período de transição das sapatilhas para o uso de um calçado minimalista, até chegar ao pé descalço. É essencial acostumar-se às imperfeições do solo e às sensações, e isso não acontece da noite para o dia. Aconselha-se seguir uma rotina de pelo menos um ano para a adaptação. Correr descalço não é indicado para quem tem pés planos ou apresenta diferenças no comprimento das pernas (dismetria). Mesmo interferindo positivamente na biomecânica natural do pé, nestes casos essa prática pode interferir no funcionamento correto das pernas.
Ajuda muito exercitar-se descalço na bicicleta, pistas de atletismo, na praia ou em lugares onde o terreno traga segurança. Não se pode correr com medo ou a olhar para o terreno, especialmente se quer treinar para uma competição”, afirmou o especialista na saúde do pé.

O período de preparação e adaptação vai fazer com que evite o aparecimento de bolhas dolorosas, fraturas, sobrecargas musculares, cortes ou outros tipos de lesões, que certamente não vai querer contrair. Correr descalço acarreta uma nova técnica, pelo que é preciso acostumar-se.

“Antes de se dedicar a correr sem proteção, é conveniente consultar um especialista para saber o estado físico e a biomecânica do seu pé. O especialista fará as recomendações devidas. É importante evitar, num primeiro momento, as superfícies defeituosas, que podem produzir feridas”, vincou o técnico administrativo.

João descalço3

João Teles, 31 anos, Oeiras

É conhecido por “João Descalço”, percorre várias provas de norte a sul do país e foi aos 20 anos que decidiu começar a pôr as sapatilhas de lado, simplesmente porque se sentia bem em ter os pés em contacto direto com o solo. Considera que desde que pratica o «barefoot running», tanto nos treinos, como nas competições (e por vezes até no dia a dia) tornou-se mais rápido, mas sobretudo mais livre.

“Correr descalço faz com que corramos da forma mais leve possível, com o menor impacto possível no solo, para além de que é toda uma experiência muito positiva a nível sensorial. Correr com sapatilhas por norma leva a que o impacto seja bem maior porque as pessoas acabam por nem reparar bem em como estão a correr quando o fazem dessa forma. O bom de correr descalço é que não há volta a dar, não se pode pisar o solo com o calcanhar nem cometer excessos na passada, nesse aspeto ajuda bastante”, afirmou.

Até agora nunca contraiu uma lesão e confessa que o que mais o desassossega é quando o tentam demover da sua convicção. No entanto, João não cede a pressões e opiniões alheias e em todos os treinos e competições não abre uma exceção, corre sempre descalço.

“Nas provas noto muita surpresa por parte dos outros atletas, porque em Portugal correr descalço não é uma prática comum, mas raramente oiço comentários depreciativos. Por vezes no final da prova até veem ter comigo com curiosidade e noto admiração de muita gente”, concluiu.

alexandre nuno milheiro

Nuno Milheiro, 47 anos, Espinho

Começou a correr descalço por curiosidade e continuou por conforto. É assim que Nuno descreve o seu interesse por esta prática, que entrou na sua vida após ter participado num workshop de corrida descalça no parque da cidade do Porto por oportunidade do International Barefoot Running Day. “Não passei imediatamente a correr descalço a 100%, mas fui introduzindo essa prática nos meus treinos e desde agosto de 2017 que é assim que me apresento nas provas em que participo”.

O atleta amador conta que passou por uma fase de aprendizagem e embora já tivesse muitos quilómetros nas pernas, sentiu que regrediu em termos de velocidade, mas com o tempo conseguiu chegar a uma performance equivalente à que tinha quando corria com sapatilhas. “Tenho de fazer um esforço muscular suplementar para amortecer os impactos, o que se sente principalmente nos gémeos. Nos pisos mais agrestes faço também um movimento com os braços para reduzir o impacto, o que deve ter o seu custo energético, mas globalmente sinto-me mais elástico na minha passada e sou capaz de correr muito mais rapidamente, o que se manifesta nos sprints e nas descidas”, contou o gestor em tecnologias de informação.
Ao contrário de João, o atleta de 47 anos já contraiu duas lesões, sem gravidade, nos gémeos desde que corre descalço, em consequência de corridas e treinos pesados, no entanto, considera que “dado o tempo e a idade não era nada que não fosse acontecer se corresse calçado.”

Abebe-Bikila

SABIA QUE?

Em 1960, Abebe Bikila atraiu a atenção do mundo sendo o primeiro africano do Leste a ganhar uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos na distância de maratona a correr descalço. O atleta etíope foi suplente na comitiva que viajou para Roma, mas não tinha sapatilhas apropriadas para competir. Durante a preparação, chegou a ser presenteado por uma marca de calçado desportivo, mas como não tinham o tamanho certo, Bikila chegou à conclusão que estaria muito melhor a correr descalço... e assim foi! Em Tóquio 1964, ganhou novamente.

Autores
---
Márcia Dores