É diabético e tem medo de sair para correr só para não arriscar uma hipoglicemia? Saiba como pode dar a volta à questão e «contornar» o problema.

De ano para ano, o número de diabéticos aumenta exponencialmente e actualmente cerca de 8% da população portuguesa é portadora desta doença metabólica crónica. Entre diabéticos tipo 1 (DT1) – os insulinodependentes – e diabéticos tipo 2 (DT2) há, de acordo com os dados mais recentes, mais de 1 milhão de portugueses com a doença, que mata, em média, 12 pessoas por dia. Só no nosso país todos os anos são diagnosticados 60 a 70 mil novos casos, na maioria DT2.

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Se, por um lado, sabemos que a prática desportiva é uma grande aliada no combate à diabetes, por outro, é também verdade que a actividade física intensa pode causar graves hipoglicemias (níveis muito baixos de açúcar no sangue) e colocar em perigo o atleta mesmo depois de fazer exercício. Vanessa Guerreiro, médica interna de Endocrinologia do Centro Hospitalar e Universitário São João, no Porto, explica que “a corrida, assim como o exercício em geral, apresenta inúmeros benefícios para a saúde da pessoa com e sem diabetes mellitus. Para além dos seus benefícios cardiovasculares (controlo do peso, melhoria da pressão arterial – PA - e do perfil lipídico), o exercício também pode melhorar o controlo glicémico do doente com diabetes, promovendo a prevenção do surgimento/ progressão ou mesmo melhoria das complicações associadas a esta patologia”.  Óptimas noticias, não concorda?

Correr é o melhor remédio

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Seja DT1 ou DT2, a corrida é uma boa escolha para tornar os seus dias mais activos e saudáveis, no entanto, quando feita sem cuidados, pode ter riscos associados. A endocrinologista esclarece que “enquanto exercício aeróbio, a corrida leva à redução dos níveis glicémicos durante a actividade e até 24h após o término da mesma, com risco de hipoglicemia noturna, se realizada à tarde ou noite sem a adopção das medidas apropriadas [ingestão de hidratos de carbono (HC) e redução da dose de insulina no pós treino]. Enquanto exercício anaeróbio pode causar inicialmente hiperglicemia, com hipoglicemia posterior, em geral 4h após o exercício”. Por outro lado, salienta, “a longo prazo é habitual verificar-se uma melhoria no controlo glicémico”, que se deve em grande parte, “ao aumento da sensibilidade à insulina a nível periférico”, com a “melhoria dos processos de captação celular de glicose, em associação com a contracção muscular, que ocorre no exercício”.

E para quem é tudo uma novidade, o que não pode deixar de saber? É importante que o diabético que vai iniciar a prática regular de um exercício de intensidade moderada a elevada consulte previamente um médico, de modo a avaliar a sua aptidão física. “Esta avaliação será tanto mais importante no caso do diabético, por ser um atleta com risco de complicações micro e/ou macrovasculares, que têm que ser excluídas, de modo a que o exercício seja adaptado à sua condição clínica. Por exemplo, um doente com neuropatia autonómica terá que monitorizar mais frequentemente a PA, a frequência cardíaca e a presença de sinais de hipoglicemia ao longo do treino. Caso exista neuropatia periférica deve-se ter um cuidado especial com os pés e o calçado”, alerta Vanessa Guerreiro.

Antes da corrida, para evitar sustos com a descida inadvertida da glicemia, o atleta “deve consumir uma refeição com baixo teor lipídico e de baixo índice glicémico, com cerca de 1g/HC/Kg de peso corporal, adaptada à intensidade e duração da corrida. Não devem ser ingeridos HC com alto índice glicémico no período pré-treino”. Além disso, salienta a médica endocrinologista, é essencial contar com medidores contínuos de glicose, como é o caso do já comparticipado Freestyle Libre, para “uma avaliação muito mais prática e regular dos valores glicémicos, permitindo actuar em conformidade”, no pré e pós treino.

Sim, é possível!

Tendo à disposição os meios para o controlo da glicemia e logo que a sua condição física seja avaliada, esteja acompanhado por um médico e se sinta capaz de vencer os medos, pode começar a pensar em fazer-se à estrada. Sim, é possível!

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Que o diga Fernando Santos, atleta com mais de uma centena de medalhas, muitas delas em pista, ao ar livre e coberta. O recordista nacional e regional em estafetas (4x100m e 4x 400m), descobriu a DT1 há perto de 25 anos e a primeira coisa que fez foi… deixar de correr. “O médico que me seguia dizia que eu só podia fazer caminhadas. Alertava-me para o perigo de ter uma hipoglicemia durante uma corrida e, por isso, estava totalmente desaconselhado fazê-lo”, conta à Pro Runners. Com o passar do tempo, Fernando foi voltando aos treinos e o medo foi ultrapassado, até porque sentia que “era a corrida que fazia estabilizar os valores da glicemia”. Durante três anos, “foi uma constante tentativa e erro para ajustar a insulina antes dos treinos, sempre com todos os cuidados. Ainda hoje tenho de continuar a testar o valor mais acertado para cada prova ou treino”.

O processo de auto-conhecimento não foi simples e uma das principais dificuldades foi perceber as diferentes reacções do corpo. Da adrenalina que antecede as provas e faz subir a glicemia, à descida gradual dos níveis ao longo do actividade, passando pela hiperglicemia seguida de hipoglicemia no final dos treinos, tudo precisou de ser testado dia após dia, prova após prova. Hoje está tudo mais controlado e Fernando tem valores padrão de insulina e de glucose para as diferentes provas que faz, “sejam maratonas, meias maratonas, provas de velocidade de pista 400 m, 800 m, ou 1500 m”.

Bomba

Para Fernando, a liberdade para desfrutar do prazer de correr aumentou quando colocou a bomba de insulina, há três anos. Agora, explica, “posso pensar em treinar daqui a meia hora e suspendo ou reduzo a insulina e vou correr sem problemas. Com as canetas, no caso da insulina lenta que dura 24h, tinha de gerir o meu dia em função disso”.

No que toca a doentes sob bomba de insulinoterapia, como Fernando, a médica endocrinologista recomenda que “cerca de 90 minutos antes da corrida deve ser reduzido o débito basa [insulina de acção lenta] para 20-50%; devendo assim permanecer até ao final da actividade. Caso se opte por suspender a bomba no início do exercício, essa suspensão não deve ser superior 120 minutos se for dado bólus prandial [insulina de acção rápida] até 30 min antes do exercício ou a 60 min se esse bólus não tiver sido dado. Posteriormente, a cada hora, deve ser administrado 50% do débito basal que deveria ter sido administrado”.

Com a libertação da insulina feita manualmente, na bomba, Fernando garante que “o controlo é super fácil, fiz as últimas duas maratonas com a glicemia a 125 mg/dL”.

No entanto, para não correr riscos, o atleta sabe que é preciso especial atenção no que toca aos alimentos ingeridos. Nota a falta de nutricionistas especializados em desporto para pessoas com diabetes, “porque todos os suplementos têm açúcar” e percorreu grande parte do caminho sozinho, até estar equilibrado. Ingere sempre hidratos de carbono de acção lenta, antes de correr, e procura ter a glicemia entre os 180/190 mg/dL. Não sai de casa sem glucose, açúcar de absorção rápida (para reverter rapidamente uma hipoglicemia, caso aconteça), e água, pois sente que desidrata com mais facilidade.

Sobre a alimentação, Vanessa Guerreiro deixa vários conselhos a anotar: “Se o exercício durar até 30 min não é necessário o consumo de HC adicionais durante o treino. Caso a corrida dure entre 30-60 min devem ser consumidos 10-15g de HC/h; se a duração for de 60-150 min o consumo deve ser de 30-60g HC/h; se durar mais de 150 min devem ser consumidos 60-90g HC ao longo da actividade (ex. 20-30g HC a cada 20min). Devem ser utilizados HC transportados por diferentes transportadores intestinais (ex. glicose e frutose). Se o atleta em questão apresentar DT2 sob antidiabéticos orais não hipoglicemiantes os cuidados a ter são essencialmente os mesmos da população em geral, a menos que o doente tenha verificado a ocorrência de hipo ou hiperglicemia durante ou no pós treino, situação em que deve ser avaliado pelo  médico e o tratamento e preparação para a corrida adaptados”.

Ingestão de HC consoante glicémia

Não sendo uma limitação para a prática desportiva, a verdade é que é imprescindível precaver a alimentação, gerir a insulina (seja através da bomba ou em canetas) e controlar a evolução da glicemia durante e depois dos treinos. Aquilo que para Fernando Santos hoje é uma equação descomplicada, já foi um «bicho de sete cabeças» e deu azo a alguns sustos. O atleta do FC Os Belenenses lembra que o “o pior de todos foi no início, quando comecei a correr. Como não mexia nos valores da insulina, entrava muito rapidamente em hipoglicemia. Um dia, num treino, estava longe de casa e comecei a entrar em valores muito baixos, quase com perda de discernimento. Tive de voltar para casa a andar e a rezar para lá chegar. Sabendo que a irritação faz subir a glicemia, eu só pensava em coisas para me irritar!”. E como «em casa roubada, trancas à porta», Fernando nunca mais se deixou enganar, redobrando os cuidados e saindo sempre com açúcar consigo. No pós treino, já sabe que à hiperglicemia se segue uma hipoglicemia e está precavido.

E mesmo que se distraia, desde há dois anos que conta com um apoio fundamental de quatro patas. Por ser assintomático e não perceber logo a aproximação de uma hipoglicemia, é Retina, uma cadela treinada, que o alerta para o perigo. A enérgica Retina foi resgatada pela associação Pata d’Açúcar e ensinada a marcar a chegada silenciosa de uma hipoglicemia. Tem um papel muito activo no pós treino de Fernando, mas também o acompanha nos treinos até 10 km. “Ela é muito importante! Sobretudo, se eu entrar em valores abaixo dos 100 mg/dL, ela dá logo sinal, nem preciso de me preocupar e ver glicemias durante o treino. Mesmo que ela não vá comigo, está à minha espera a fazer o seu trabalho. A última marcação que fez foi após o treino, já estava a tomar banho e ela entrou na casa de banho a ladrar. Fui ver e os valores estavam abaixo dos 60”, conta.

Ultra Desafio

Sérgio Moreira estrela grande trail

E se, como já vimos, correr com diabetes pode ser um desafio quando não se está preparado, fazer ultramaratonas é, na realidade, um verdadeiro teste ao controlo da doença. Sérgio Moreira foi diagnosticado com DT1 em 2011 e um ano depois estava a correr. Sempre praticou desporto, mas foi na corrida que encontrou a modalidade que o preenche, pelo “constante desafio na superação, a evolução nos quilómetros/tempo de prova para perceber o nosso limite… as provas sempre diferentes e, por fim, a ajuda no controlo da glicemia”. Em três anos, 2014, estava a fazer a sua primeira ultramaratona (70 km na Serra da Freita) e nunca mais parou, tendo já corrido os 120 km do Lavaredo Ultra Trail - 120kms (Itália), os 125 km do Transgrancanaria, ou os 170 km do Ultra Trail Mont Blanc só para citar alguns. À PRO RUNNERS explica que “foram quase 3 anos de treino, com uma evolução gradual e sem pressas”. Sérgio afirma que o aumento da quantidade de treino foi feito com orientação de “pessoas conhecedoras da minha patologia” e contou com “os amigos que fui conhecendo em provas e a família que sempre me acompanhou e ajudou em todo este processo. Não esquecer a equipa médica que me acompanha, do Hospital Gaia/Espinho, que sempre me ajudou e nunca me limitou a fazer o que queria, apenas me foi dando toda a ajuda possível para não ter qualquer situação que prejudicasse a minha saúde”.

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Para o autor da página no Facebook «Ultra Diabético», onde partilha os quilómetros que faz e as glicemias que regista ao longo do caminho, a grande dificuldade foi sempre “perceber em prova os sintomas de hipo e hiperglicemia que por vezes acontece”.

Tem muito cuidado com a alimentação e tenta sempre que “os valores de glicemia não baixem dos 100mg/dL, porque se isso acontece e em esforço, torna-se muito difícil o valor subir”. Tal como Fernando, Sérgio usa bomba de insulina, mas faz monitorização com o medidor contínuo. Uma vez que a maior parte das provas que faz são grandes distâncias e demoradas, opta por baixar a “a administração da insulina basal, normalmente para 10% a 30%, dependendo da prova. Assim, tenho sempre alguma insulina activa a infundir no corpo e reduz a probabilidade de criação de corpos cetónicos, que pode no extremo levar a coma diabético”.

 

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Sérgio Moreira revela que pouco tempo depois de começar a correr, quando pensou em fazer a primeira maratona, em 2013, foi aconselhado por amigos que também corriam a fazer alguma suplementação. Essa suplementação seria uma ajuda “no rendimento desportivo, mas também na recuperação pré e pós treino”. A contrário de Fernando, Sérgio Moreira não sente a falta de apoio por parte de nutricionistas especializados, até porque toda a nutrição que utiliza “ou consigo perceber pelos seu ingredientes se é uma boa solução ou não para mim, ou, caso não consiga perceber, tenho um amigo nutricionista, César Leão, que tem uma vasta experiência e que acompanha algumas pessoas DT1, que me ajuda a perceber se é importante ou não essa utilização”.

Hoje, na mochila nunca lhe faltam “pacotes de açúcar, o Freestyle libre e alimentação para a prova”. Um susto, em 2014, bastou, para aprender a lição e levar comida suficiente para a competição: “na prova Amigos da Montanha (+/- 30kms), faltavam cerca de 3 a 4kms para o fim e não tinha nada para comer e estava em hipoglicemia, passei por um atleta e pedi algo para comer porque estava mesmo com os valores super baixos”, recorda. Outro susto “e grande”, foi em 2018, no UTMB (170kms), onde, “por volta dos 40kms e com muito mau tempo de chuva, o cateter da bomba saiu e fiquei sem insulina. No abastecimento seguinte tinha a minha esposa, que me acompanha em todas as provas, a Marlene, com um novo cateter e tive que parar, secar a pele e colocar novo cateter”. Nada disto o tem impedido de continuar a correr e a estabelecer objectivos cada vez maiores. Considera que “em todo o mundo existem atletas extraordinários com uma capacidade de superação enormes, tanto provas de longas distâncias e triatletas (IronMan) já completados, por isso, a limitação está na cabeça de cada um e cabe-me a mim e a muitos outros provar o contrário”, pelo que tem feito o seu “papel na sociedade diabética para desmistificar tal situação”. Na lista de provas a correr está, lá fora, a Western States 100 miles e a Zegama (42kms), ou, cá dentro, a PT281, de 281kms, na Beira Baixa. Haja pernas, diremos nós, porque a diabetes claramente já não é impecilho!

Um grande «senão»

Fernando Santos e Sérgio Moreira são apenas dois exemplos que dão voz a uma comunidade cada vez maior de diabéticos que venceram o receio de correr. Garantem que, como eles, há muitos mais em prova, mas na sombra. Fernando explica que “há quem ache preferível esconder, ou porque não querem que se saiba, ou porque não se sentem à vontade para assumir a doença perante outros”. Mas a grande fatia que se esconde, fá-lo para não perder direitos que lhes seriam negados, sabendo-se da doença. Falamos, em específico dos dos seguros, pois “sendo diabético não tem direito ao seguro desportivo, ou se tem, muitas das cláusulas são negadas, devido à doença, as seguradoras ainda fazem essa discriminação”, afirma Fernando Santos.

Diabetes Team Portugal

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Trata-se de um projecto desportivo, integrado na Federação das Associações de Pessoas com Diabetes (FPAD), cuja génese remonta a 2018, durante a Scalabis Night Race, em Santarém. O pai de uma criança com DT1, Alexandre Silva, decidiu juntar um grupo de DT1 (pais, cuidadores e amigos), para participar na corrida, sob o nome de Diabetes Running Team, com o objectivo de fazer “uma mancha azul no meio da corrida e alertar as pessoas para a temática da diabetes”, conta Fernando Santos, um dos participantes, que é hoje o «capitão» da Diabetes Team Portugal: “Sendo eu um dos participantes dessa corrida – e como tinha agendada a participação num evento de cariz desportivo em Spoletto (Itália), integrado na comitiva da FPAD – achei a ideia interessante e depois de algumas conversas, fomos cimentando ideias e surgiu a Diabetes Team Portugal”.

A 3 de Março de 2019 organizaram o I Campeonato Nacional de Meia Maratona, integrada na Meia Maratona de Cascais, com o apoio da HMS Sports, com uma classificação própria para pessoas com DT1. Para 2020, estava previsto que se realizasse o II Campeonato de Meia Maratona e o I Campeonato de Estrada, na distância de 10 Km, integrado na Scalabis Night Race, mas a pandemia veio estragar os planos.

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Sérgio Moreira, Carlos Farinha e Fernando Santos - Todos DT1, na Gerês Extreme Martahon

O maior projecto do ano que passou seria a estreia internacional, também ela «congelada» pela situação pandémica: Em Março, estava tudo preparado para que uma comitiva de 4 atletas e 1 dirigente da FPAD viajassem até Roma, para disputar o Campeonato Internacional de Maratona “com grandes ambições de  voltar a trazer o título para o nosso país”, explica Fernando, que venceu este campeonato em 2017 e que garante que “três dos nossos atletas iam com o objectivo de ficar nos dez primeiros classificados”.

Para já, a Diabetes Team Portugal ainda não conta com o apoio da Federação Portuguesa de Atletismo, apesar de já ter apresentado o projecto, mas “não desistiremos. Gostaríamos muito de nos podermos sentar à mesa com representantes da FPA, para podermos dar a conhecer os nossos objectivos que passam também por levar o nome de Portugal além fronteiras”.