Aurora Cunha revisita carreira de sucesso em exclusivo para a Pro Runners Magazine.

A frontalidade é uma arma que não abdica e, fiel a um discurso sem rodeios ou palavras dúbias, Aurora Cunha fala-nos, em exclusivo, do passado repletos de títulos, de episódios caricatos – um deles com o padre da sua freguesia natal à mistura - e de um percurso feito à base de “muito trabalho e sacrifício”. A caminho de completar 62 anos, a antiga atleta, natural de Guimarães, vai ser alvo de (mais) uma homenagem pelo seu trajeto triunfante na modalidade.

Recuemos uns anos: como é que tudo começou?
Pertenço a uma família com 10 irmãos, sou natural de Ronfe [freguesia de Guimarães] e fui uma jovem que viveu uma revolução, um 25 de Abril que mudou o nosso país, um Portugal diferente do que é agora. Por volta dos meus 14 anos, começam-se a fazer umas corridas em Ronfe e numa delas, a do “Pé Descalço”, ganhei a toda a gente, homens e mulheres. Era uma miúda-rapaz e estávamos em 1975.

E depois?
Comecei a treinar duas vezes por semana, com um treinador que era serralheiro mecânico, no Juventude de Ronfe. Em 1976 dá-se o grande salto, com os Campeonatos Nacionais, em Lisboa. Mas, logo a seguir, um problema: como é que eu ia até Lisboa? Fomos por aí abaixo, mas ia acompanhada por um homem casado, o que era mal visto na altura e os meus pais não me queriam deixar ir. Como era teimosa, lá fui. Fomos até Lisboa, numa grande festa e demorámos 18 horas. Hoje em dia, as atletas chegam às competições de Mercedes e dizem que não têm condições [risos].

Isso é uma crítica?
[Pausa] Fico é triste, porque atualmente os atletas têm todas as condições, desde apoio médico, vitamínico, psicológico, têm meias até ao joelho, relógios GPS, têm isto e aquilo e não os vejo a fazer melhor agora do que eu fazia há 30 anos. A verdade é essa.

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Voltando a Lisboa, houve peripécias pelo meio, certo?
Nessa altura, nem sabia o que era sapatos de bicos. Esta é uma estória que tem de ser contada, para passarmos a ideia de que é necessário haver um espírito de sacrifício em alta competição. Fui com o meu amigo Alberto Silva a uma loja de desporto e só havia o número 37 – eu calçava o 36 - das sapatilhas adequadas para correr. O que fiz? Desenrasquei-me, peguei em folhas de jornais, meti-as nas sapatilhas 37, e lá fui eu correr. Na corrida, a faltarem cerca de 300 metros já estava com os braços no ar. O meu treinador, coitado, estava aos gritos a dizer para eu ter calma. No final da prova, os jornalistas perguntam-me: ‘Sabe o que acabou de fazer? Nada, quem fez foram os meus sapatos, porque calço 36 e hoje estou com uns sapatos 37’. A verdade é que tinha batido o recorde nacional dos 1500 metros… No domingo, ao comprar os jornais, fazia capa em todos eles. Sinceramente, não tinha a noção do que tinha feito com apenas 15 anos.

Um começo em grande, portanto.
Sim, felizmente. Daí para a frente bati sucessivos recordes ao longo dos anos. Fui a atleta portuguesa que mais recordes bati.

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Os 17 recordes no Estádio Nacional

 

E vai ser homenageada brevemente…
Soube disso recentemente. Vou ser alvo de uma homenagem nas “Cem Horas a Correr”, porque sou a atleta portuguesa que bati 17 recordes na pista do Estádio Nacional. O José Carvalho [antigo atleta] é que me disse isso. Vão fazer uma festa e claro que fico orgulhosa.

Como é que os seus pais foram reagindo a esta ascensão na carreira?
Estamos a falar de gente humilde, sempre tentaram que nada me faltasse, mas sofriam muito, principalmente a minha mãe. Deixe-me dizer isto. Tínhamos um pároco na aldeia, as pessoas antigamente iam confessar-se regularmente e ele, num desses momentos, disse à minha mãe que queria que ela me tirasse da rua, que me dissesse para parar de correr. Ainda por cima, tinha andado a treinar na igreja e a mostrar as pernas… Mas disse logo à minha mãe que nunca deixaria a corrida por nada deste mundo. O próprio pároco, na sua pregação por outros locais, já tinha orgulho na minha carreira, dizia que tinha na sua freguesia uma campeã. Como vê, mudei mentalidades até na minha terra.

A sua mãe habituou-se à ideia?
Claro que sentiu orgulho. Sou do tempo em que passei a ouvir as pessoas a dizerem à minha mãe que viam o diabo e que aparecia às 7 da manhã no pinhal. A minha mãe, coitadinha, dizia às pessoas da freguesia que era a sua Aurora a treinar. Ainda bem que a minha persistência, o meu querer valeu a pena. Lutei e saí vencedora. Não sei se alguma jovem da minha idade, depois de tudo o que passei, conseguia singrar no atletismo.

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Depois aparecem os grandes clubes a cobiçá-la...
Sim. O Moniz Pereira, através do Sporting, foi a Ronfe, estava tudo praticamente acertado com ele, mas os meus patrões da altura não queriam que eu fosse para Lisboa. Acabei por ir para o FC Porto. Fazia quatro horas de viagem só para ir treinar.

No FC Porto há um episódio com Pedroto.
Vou treinar com o professor Fonseca e Costa e há uma semana em que estou a treinar nas Anta. De repente, vejo um homem com óculos escuros e de boné a mandar-me parar enquanto eu corria. Respondi-lhe que não podia parar porque estava a treinar. Foi uma pessoa educada, assistiu ao treino e veio falar connosco. Disse-lhe quem era, de onde vinha, o meu percurso até chegar ao clube e, a partir dessa quinta-feira, o senhor Pedroto acabou por ser o meu fã número 1. E acredito que aproveitou os ensinamentos da corrida para aplicá-los no futebol. Foi uma pessoa espetacular, respeitadora e que jamais esquecerei. Ainda hoje sou grande amiga da família.

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A mágoa azul e branca

Nasceu portista ou essa paixão cresceu com o tempo?
Tenho uma costela do Vitória de Guimarães, não escondo isso, mas o FC Porto deu-me tudo e eu dei tudo ao FC Porto. Depois, tenho consciência que o FC Porto começou a ganhar com a entrada do Pinto da Costa e com a minha entrada. Dei títulos grandiosos ao clube e na minha altura vivia-se o FC Porto de maneira diferente. O FC Porto da década de 1980 nada tem que ver com o atual, perderam-se valores e o atletismo está pelas ruas da amargura. Está como está por causa das SAD’s, que só olham para o futebol e para o dinheiro que ele traz. E, sem medo de o dizer, o futebol está podre.

Mas viveu momentos menos positivos de azul e branco.
Há coisas que passam… mas não esquecemos. Saí por causa de problemas de frontalidade com o presidente, ainda que hoje sejamos grandes amigos. O FC Porto tem uma dívida muito grande comigo e numa coisa pequenina. Tirando a Fernando Ribeiro, porque é campeã olímpica, sou a atleta mais credenciada da história do clube. Quando têm figuras no museu do FC Porto que nada fizeram para a valorização do FC Porto e não têm lá o meu boneco, isso deixa-me naturalmente triste. E digo isto porque fazia todo o sentido que assim fosse. Era uma obrigação de Pinto da Costa e da direção em colocar lá a figura mais importante da década de 1980 do FC Porto.

É uma mágoa que guarda?
Tenho pena, as coisas levam muitos anos a acontecer, a concretizar-se, mas é preciso lembrar que cheguei a rasgar um cheque de 3.500 contos para rejeitar o Benfica e para ficar ao lado de Pinto da Costa. Faz parte do passado, mas há quem tenha memória curta…

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Os Jogos e os duelos com Rosa Mota

 

A medalha olímpica é a única que falta no seu museu?
Não vivo obcecada pela falta de uma medalha olímpica. Orgulho-me da carreira imensa que tenho, ganhei cinco das Maratonas mais importantes do Mundo, orgulho-me dos títulos fantásticos que conquistei. Estive em três Jogos Olímpicos, houve coisas em que errei, falhei em algumas situações e houve pessoas que falharam comigo. Os portugueses esperavam mais de mim nos Jogos, mas quem mais sofreu fui eu. Temos de saber conviver com as derrotas. A maior medalha foi a minha filha. Tem 28 anos e é a medalha mais rica que posso ter. Prefiro é falar das coisas boas.

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Qual o título mais saboroso que conquistou?
Ganhar em 1986, em Lisboa, com 30 mil espetadores a assistir, foi uma festa indescritível. Fui a primeira atleta a fazer o “tri” em Campeonatos do Mundo. E não foi o facto de ganhar à Rosa Mota [2.ª classificada], mas antes aquilo que pude conquistar.

A rivalidade com a Rosa Mota foi benéfica para a modalidade?
Não havia rivalidade. Perdi duas ou três vezes com a Rosa Mota, mas na totalidade ganhei muito mais vezes. Ela teve foi mais sorte do que eu numa situação. Em 1982, foi para a maratona quando esta variante estava no auge. O meu professor da altura, Fonseca e Costa, hoje reconhece que deveríamos ter apostado na maratona. Temos de respeitar tudo o que a Rosa Mota fez pelo atletismo nacional, pois é um símbolo da modalidade. Éramos amigas, mas as pessoas mudam de atitudes com o passar dos anos e cada um vive a sua vida. Não vou estar a dizer que somos grandes amigas, porque estaria a mentir, mas tenho grande respeito por ela.

Esse espírito arrojado e frontal já lhe trouxe dissabores?
Quando elaborei a minha biografia [Uma Vida de Paixões, Maio de 2018], e peguei nos recortes dos jornais da altura, pensei: ‘Como é que fui capaz de dizer isto?’ Faria tudo igual, mas de outra maneira. Paguei algumas coisas por ser quem sou, mas não gosto de viver com hipocrisia. Temos de ter cuidados com as amizades que criamos. As amizades que pensamos que são puras, às vezes, deixam-nos ficar mal. Quero continuar a ser a mesma pessoa e acho que sou um exemplo para a juventude, de alguém que não tinha nada e depois venceu muitos títulos.

A pandemia ensinou-lhe alguma coisa?
Será que já paramos para pensar por que será que tudo isto aconteceu? Estávamos numa sociedade sem princípios, as amizades eram falsas e não foram estes valores que me ensinaram. Sou do tempo em que éramos solidários com os vizinhos, que lhes perguntávamos se tinham sopa para comer. Hoje em dia há uma falta de respeito gritante. Valerá a pena ser assim tão frontal? Sim, vale, não me arrependo nada! Têm de olhar para mim como sou e não como querem que eu seja.

Texto: José Lima / Fotos: Paulo Jorge Magalhães

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