Fez provas de obstáculos, cross, meia maratona e maratona. A PRO RUNNERS esteve à conversa com um dos principais (e mais versáteis) atletas nacionais das décadas de 60, 70 e 80, Carlos Manuel Tavares da Silva.

Cresceu a brincar na rua descalço e formou-se num tempo em que o mesmo par de sapatilhas dava para vários atletas. Embora esquecido por muitos e figura (talvez) pouco sonante entre as novas gerações, Carlos Tavares da Silva tem o seu nome escrito na história do atletismo nacional e é a prova viva de que a força de vontade, determinação e uma mente resiliente são ingredientes chave para o sucesso desportivo.

Tetra Campeão de Portugal de três mil metros - entre 1976 e 1979 - Tavares da Silva notabilizou-se ao serviço do Sport Lisboa e Benfica (SLB), tendo igualmente passado pelo atletismo do Sporting Clube de Portugal (SCP). Depois de arrumar as sapatilhas, calçou os pitons e enveredou por uma carreira na arbitragem de futebol, até deixar por completo os meandros do desporto. A vida empresarial levou-o por outros caminhos mas a memória e os álbuns de fotografias, que guarda religiosamente, não o deixam esquecer as lembranças dos “bons velhos tempos”. 

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Dos campos da Azinhaga para as pistas da cidade

Carlos Manuel Tavares da Silva nasceu em Lisboa vai para 70 anos mas recorda-se bem da infância e das corridas pelos campos, quando visitava os avós, na Azinhaga, terra do Prémio Nobel da Literatura, José Saramago de quem, aliás, é primo.

“Ia da Azinhaga até Monsanto, passava pela Golegã, Chamusca... Depois voltava para trás... Os homens vinham do campo de bicicleta, e eu vinha atrás deles a correr. Aquilo era uma paixão.”

Ribatejano de coração foi, contudo, na Penha de França, em Lisboa, que foi criado. “Andávamos sempre descalços, a correr, a jogar à bola...” relembra.

De origens humildes, começou a trabalhar aos 8 anos. Com 11, perde o pai e torna-se o sustento da família. “O meu pai foi jogador do Benfica, era um adepto fervoroso do clube e gostava que os filhos praticassem desporto. Quando morreu, em sua homenagem fui para o futebol. Andei no Campo Grande, e ao lado do campo de futebol era a pista de atletismo. Um dia, quando acabei o treino, vi um conhecido que me convidou a experimentar. Na altura era treinador o Rui Mingas, que me fez um teste de 400m. A partir daí comecei assiduamente a treinar.”

Aos 14 anos Tavares da Silva inicia-se na competição e, um ano depois, debuta numa prova oficial, no Hipódromo do Campo Grande, ficando em 2.º lugar no Campeonato Regional e participa no primeiro Campeonato Nacional de Cross, prova que viria a ganhar por três vezes ao longo da sua carreira.

Como juvenil e junior bateu os recordes dos 1 500m e dos 3 000m obstáculos, vindo, mais tarde, a ser considerado por muitos como um dos maiores valores do atletismo português da década de 70, destacando-se nas provas de fundo.

Ao SLB chegou em 1967, onde teve como técnicos Matos Fernandes, José Araújo e Rui Mingas, vestindo de vermelho durante uma década. Trocou para o velho rival, Sporting, em 1979.

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Mas o seu percurso esteve longe de ser fácil. “A minha vida social era difícil porque tinha de ganhar dinheiro para levar para casa. Acordava às 4h para começar a trabalhar às 5h. Treinava à noite, mas estava sempre muito cansado e tinha uma carência grande de alimentos”. Ainda assim “tive a minha primeira internacionalização como Juvenil, com o Vasco Pereira em Madrid. Fui o 1.º atleta Juvenil a ser internacional Junior, em 1969. Por essa altura, quando fiz a primeira prova de 1 500m de obstáculos bati o recorde nacional”, realça o atleta que sempre teve a habilidade de conseguir saltar bem com ambas as pernas.  “Como tinha muita qualidade para os obstáculos o Benfica começou-me a meter nas provas de Seniores e com 17 anos fui, pela primeira vez, internacional sénior, em Marrocos”.

Com a camisola vermelha correu o mundo. No Sporting foi acompanhado pelo amigo de longa data Prof. Mário Moniz Pereira que considera “um psicólogo. Tinha formas de incutir nos atletas uma força superior. Tinha gosto por aquilo que fazíamos.” A estadia no Sporting durou apenas uma temporada, regressando à Luz, em 1980, onde se manteve até ao final da carreira.

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Internacional por 87 vezes e outras 15 Campeão Nacional, Tavares da Silva lamenta que o Benfica não lhe reconheça o devido mérito, quando o próprio deu tanto ao clube. “Estive mais de vinte anos no SLB e sinto uma ingratidão muito grande”, comenta com alguma mágoa pela falta de reconhecimento por parte das diversas direções.

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Um mundo por descobrir

Com a primeira internacionalização em 1971 no Campeonato do Mundo de San Sebastian (Espanha), Tavares da Silva representou Portugal nas Taças da Europa de 1975 e 1977 - vencendo os 3 000m  obstáculos em Belgrado (Jugoslávia) - e nos Campeonato do Mundo de ´72 em Dusseldorf (Alemanha), ´73 em Gent (Bélgica), ´78 em Glasgow (Escócia) e ‘83 em Helsínquia (Finlândia). Títulos de Campeão Nacional conquistou 15, juntando aos de Cross os das distâncias de 3 000m e 10 000m.

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“Nos anos 70 e fui o primeiro atleta a ir aos países de leste após o 25 de abril. Tive a oportunidade de estar com um dos melhores atletas do mundo de todos os tempos: o Emil Zátopek. Tornámo-nos amigos e inclusive, a segunda vez que lá fui, levei-lhe um livro que tinham feito aqui em Portugal, que falava sobre dele e a mulher Dana, que foi campeã olímpica também no lançamento do Dardo. Ganhei provas de obstáculos na União Soviética, Polónia, Checoslováquia, Jugoslávia, França, Bélgica...”

Inesquecível, entre tantas provas, a Maratona de Nova Iorque, notícia em quase todos os jornais nacionais. “Fui a Nova Iorque com o intuito de bater o recorde do mundo da Maratona. Tinha um dente estragado e, derivado à pressão do avião, quando cheguei começou a doer-me muito.  A organização levou-me a uma clínica onde um médico dentista teve de fazer uma pequena cirurgia para me retirar o dente e tive de tomar antibióticos. Isso debilitou-me para a maratona.  Ia muito bem ao princípio mas aos 30km quebrei de tal maneira que tive uma dificuldade imensa para fazer os outros 12km. O Carlos Lopes ia comigo, desistiu e eu fiquei ali à frente para tentar a fazer o possível. Terminei mas fiquei em 62.º em 2h23... Fiz mais tempo nos últimos 12km dos que nos primeiros 30km!!” diz a sorrir, acrescentando, “ainda assim, ganhei ao campeão olímpico da altura, Frank Shorter, que também se sentiu mal e terminou depois de mim, em 65.º!” 61ad90c4-83eb-4432-91b7-3ccc485ac39d

Seus são tempos em Maratonas como 2h15m45 em Berlim ou 2h16m54s na de Frankfurt. Curiosamente, era apenas nesta distância que calçava meias para correr!

A faltar no extenso currículo ficou uma presença olímpica, “não tinha que ser... Havia uma prova de seleção em Frankfurt. Foram todos na sexta-feira e eu, por causa do trabalho, só fui no sábado. O Carlos Lopes já estava apurado. Só faltava eu, o Delfim Moreira ou o Cidálio Caetano. Desses três só dois é que iam aos Jogos. O avião em que ia, quando sobrevoava Madrid, rebentou-lhe um reator e teve de aterrar de emergência. Acabei por não participar na prova de apuramento, acabando por ficar como suplente, para os Jogos Olímpicos de Los Angeles de 1984.”

Uma cirurgia à coluna, em 1987, fez Carlos Manuel Tavares da Silva abandonar as pistas de atletismo e de cross, mas manteve até 1997 a atividade como árbitro de futebol, iniciada em 1981. Chegou a atuar em duas finais da Taça de Portugal e foi um dos árbitros assistentes da célebre vitória do Sporting por 7-1 sobre o Benfica. Mas é de correr que tem saudades. “Correr era uma paixão imensa”

Com experiência em Cross, 3 000m, 10 000m, meia maratona e maratona, interrogado sobre qual a distância favorita, Carlos responde quase num suspiro, ganhando fôlego à medida que a sua mente viaja de novo para as pistas: “Eu gostava de todas as provas de fundo. Nos 3 000m obstáculos dominava, os 10 000m passei a dominar, a meia maratona, maratona...”

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Não fossem os atuais problemas físicos, que o impedem de correr, Carlos acredita que ainda estava «para as curvas» nas maratonas... “A maratona é uma prova de amor. Sofre-se muito. Há pessoas que chegam a uma determinada altura e desistem mas eu nunca desisti e ia sempre até ao limite. ia sempre para a frente. Se não fossem os problemas físicos graves que tenho, ainda fazia maratona, porque é uma paixão muito grande”, afirma de olhos brilhantes, o homem que outrora, tantas vezes, levou longe o nome de Portugal, e para quem a vida tem sido madrasta. Tavares da Silva nunca desistiu na maratona e apesar das rasteiras da vida, tem sabido transpor os obstáculos tal como fazia nos tempos da meninice. Valha-lhe a (boa) memória e não o deixemos nós cair no esquecimento!

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Autores
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Ana Filipe