No universo da corrida, o treino é apenas uma parte da equação para alcançar o melhor desempenho. A outra, frequentemente desvalorizada, é a recuperação.

Uma recuperação eficaz não só reduz o risco de lesões, como também permite uma melhor adaptação ao estímulo do treino. Quando negligenciada, pode resultar em fadiga acumulada, sobrecarga e perda de rendimento.

1. Porque a recuperação é essencial para corredores?

Apesar da crescente atenção dada aos métodos de treino, a recuperação continua a ser um tema menos explorado, tanto entre atletas amadores como profissionais. No entanto, é precisamente neste período entre treinos que ocorrem os processos fisiológicos mais importantes para o progresso do atleta: regeneração muscular, reposição de reservas energéticas e reorganização do sistema nervoso. Por isso, compreender e valorizar esta componente torna-se essencial para qualquer corredor que pretenda evoluir de forma sustentável.

Neste artigo de opinião, abordarei algumas das principais estratégias de recuperação utilizadas no contexto de treino. Analisarei a evidência científica disponível relativamente à sua eficácia, procurando distinguir entre aquilo que é comprovado por evidências, e o que se baseia apenas em tendências ou perceção individual. Para além disso, apresentarei sugestões práticas que qualquer atleta poderá incorporar na sua rotina semanal de treinos e ao longo dos diferentes períodos de preparação, por forma a otimizar o seu desempenho e preservar a sua saúde a longo prazo.

3. As estratégias mais eficazes: a base da pirâmide

É importante compreender que nem todas as estratégias de recuperação têm o mesmo impacto. Podemos organizá-las numa estrutura que chamamos de Pirâmide da Recuperação, onde na base se encontram os métodos mais eficazes e com maior suporte científico. À medida que subimos na pirâmide, surgem estratégias com menor evidência e impacto comprovado.

Na base da pirâmide estão:

O Sono: Esta é provavelmente a ferramenta mais poderosa de recuperação. Dormir entre 8 e 9 horas por noite e, sempre que possível, e incluir sestas de 20 a 90 minutos pode melhorar significativamente o humor, a força, a coordenação motora e a perceção de esforço.

Nutrição e Hidratação: Essenciais para a recuperação pós-exercício. O objetivo é repor os níveis energéticos, reidratar o organismo e promover a síntese proteica para reparar e adaptar os tecidos. O consumo de hidratos de carbono e proteínas após o treino acelera a reposição de glicogénio e a reparação muscular. A hidratação deve ser iniciada antes, durante e mantida após o término do exercício, especialmente em dias quentes.

Gestão da carga de treino: O volume e a intensidade do treino devem variar de forma planeada, tendo em conta os objetivos da temporada, a real disponibilidade para recuperar entre sessões, e as características individuais do atleta. Se o corredor não recuperar adequadamente entre sessões intensas, o rendimento será inevitavelmente afetado. A gestão eficaz da carga é, por isso, indispensável, sabendo que, quanto maior for a carga de treino, maior terá de ser a recuperação. Muitos atletas incorrem no erro de aumentar a carga de treino à custa da diminuição das horas de sono por exemplo, sendo esse o caminho inverso do que deve acontecer. Qualquer aumento da carga de treino deve ser acompanhado por um aumento das horas de descanso. 

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  1. Como integrar estas práticas no dia a dia

Rotina de Sono: Estabelecer horários regulares para deitar e acordar, evitar a exposição à luz azul antes de dormir, manter o quarto escuro e fresco, e incluir sestas sempre que possível, são práticas simples que melhoram substancialmente a qualidade do sono.

Estratégia Nutricional: O acompanhamento de um nutricionista especializado em desporto pode ser determinante. Planear refeições ricas em hidratos de carbono e proteínas de qualidade, garantir uma hidratação adequada (com água e bebidas com eletrólitos) e adaptar estas estratégias às exigências do treino são passos fundamentais.

Personalização: Cada corredor tem necessidades distintas. Adaptar o número de horas de sono, o consumo calórico e hídrico à carga de treino e às condições ambientais é essencial. Um treinador qualificado, conhecendo o perfil e a resposta do atleta ao treino, poderá planear e ajustar cada sessão para maximizar os ganhos e reduzir os riscos associados à fadiga.

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  1. Outras estratégias populares (com evidência variável)

À medida que subimos na Pirâmide da Recuperação, encontramos estratégias com suporte científico menos consistente. Nestes casos, a perceção individual de bem-estar torna-se um critério relevante. O que funciona para um atleta pode não funcionar para outro.

Segundo patamar da pirâmide:

Água fria: Também conhecida por crioterapia, esta técnica, reduz a temperatura corporal e o fluxo sanguíneo, ajudando a minimizar a inflamação e o desconforto muscular.

Água quente: Promove o relaxamento muscular e aumenta a circulação, podendo acelerar a eliminação de resíduos metabólicos.

Compressão (roupa ou botas): Visa reduzir o inchaço muscular, melhorar o retorno venoso e atenuar a dor e rigidez muscular. Muitos atletas referem uma melhor perceção de recuperação com o seu uso regular.

Recuperação Ativa: Atividades de baixa intensidade, como caminhar ou pedalar (em bicicleta estática ou com rolos), ajudam a promover a circulação e a sensação de bem-estar, sem sobrecarregar o organismo.

Massagem Manual: Estimula a circulação sanguínea e linfática, promove a eliminação de resíduos metabólicos e reduz a tensão muscular. Além do alívio físico, contribui para um maior relaxamento mental.

Sauna, Jacuzzi e Banho Turco: Promovem o relaxamento muscular e a sensação de bem-estar. São frequentemente referidas como técnicas que melhoram o sono e até a capacidade respiratória. São também utilizadas frequentemente para os atletas se adaptarem ao calor. É importante referir que a exposição ao calor impacta na desidratação.

Terceiro e último patamar da pirâmide:

Rolos de libertação miofascial, pistolas de massagem e estimulação elétrica: Estes equipamentos presentam resultados inconsistentes. Alguns atletas relatam melhorias na rigidez e dor muscular, mas a evidência científica é limitada. O uso de técnicas adequadas e a experiência do atleta têm elevada influencia nos eventuais benefícios.

Alongamentos: Apesar da sua popularidade, os estudos não demonstram benefícios significativos na recuperação muscular. No entanto, podem contribuir para o relaxamento geral e alívio de tensão. Para modalidades onde a flexibilidade é determinante, como seja a ginástica por exemplo, os alongamentos são utilizados bem para além de procurar uma recuperação mais acelerada.

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  1. Conclusão: o essencial é simples

Como recomendação principal, o foco deve estar no sono, na nutrição e hidratação e na gestão da carga de treino. Sem estas bases bem asseguradas, o recurso a estratégias mais avançadas terá efeitos muito reduzidos.

Importa lembrar que a eficácia destas estratégias é individual. Cada atleta deve experimentar e identificar aquelas que melhor promovem a sua recuperação.

Recuperar bem não exige equipamentos caros nem métodos complexos. O que realmente importa é o compromisso com as práticas que têm maior evidência e impacto. A recuperação, tal como o treino, deve ser planeada e personalizada.

Dicas para otimizar a recuperação pós-competição – Exemplo Maratona

Dia de Prova

O processo de preparação para uma maratona é uma verdadeira “viagem” desportiva, repleta de momentos marcantes, que culmina no dia da prova — a recompensa merecida por todos aqueles que treinaram com dedicação e disciplina. Este é o momento de desfrutar da experiência e valorizar cada instante.

Mantenha-se fiel ao ritmo previamente definido, seja rigoroso nos abastecimentos e desfrute plenamente de cada metro percorrido.

No dia da competição, os pormenores podem determinar não apenas o desempenho durante a prova, mas também a qualidade da recuperação subsequente. Eis algumas recomendações práticas:

  • Conclua a última refeição cerca de 2 horas e 30 minutos antes do início da prova.
  • Chegue com antecedência ao local de partida e leve consigo um pequeno snack previamente testado, como uma barra energética. Caso ocorra um atraso na partida, evitará a sensação de fome.
  • Realize o aquecimento de acordo com o planeado. Em alguns casos, poderá ser mais adequado fazê-lo antes do pequeno-almoço, sobretudo se as condições logísticas no local da partida não o permitirem.
  • Dirija-se à sua zona de partida (“box”) assim que possível, transportando uma pequena garrafa de água e um gel energético, para consumo cerca de 15 minutos antes do início.
  • Quando o desgaste muscular se tornar evidente, concentre-se na cadência em vez da velocidade. Mantenha a técnica de corrida e assegure-se de não falhar os abastecimentos, especialmente nas fases decisivas da prova.
  • Se, na parte final, sentir quebra de energia, não hesite em reforçar a ingestão de géis energéticos, intercalando-os com os que já tinha previsto.

Após a conclusão da prova, os principais objetivos para a recuperação consistem em:

  1. Repor as reservas de glicogénio muscular;
  2. Restabelecer os fluidos e eletrólitos perdidos através do suor;
  3. Fornecer os nutrientes necessários para promover a reparação dos danos musculares.

Assim que cruzar a linha de meta, é fundamental priorizar a ingestão de alimentos ou bebidas que favoreçam a reposição rápida de glicogénio e a reidratação. A ingestão de uma peça de fruta ou de uma bebida energética com hidratos de carbono de absorção rápida constitui uma opção prática e eficaz.

Para além dos hidratos de carbono, a proteína desempenha um papel crucial na recuperação muscular. Caso não vá realizar uma refeição principal (almoço ou jantar) pouco tempo após a prova, recomenda-se considerar o consumo de uma bebida de recuperação ou batido que contenha uma combinação equilibrada de proteínas e hidratos de carbono.

A finalização de uma maratona é, naturalmente, um momento de celebração. No entanto, se optar por consumir bebidas alcoólicas, deve estar consciente de que estas podem agravar a desidratação e, consequentemente, comprometer o processo de recuperação.

Nos dias a seguir à competição

  1. Priorize o sono: Dê especial atenção ao descanso nos dias antes e depois da prova.

  2. Nutrição e hidratação: Após a corrida, foque-se em consumir hidratos de carbono e reidratar com bebidas que contenham eletrólitos.

  3. Manter-se ativo: Embora o descanso seja essencial, atividades leves como caminhar, pedalar ou nadar promovem uma recuperação mais eficaz.

  4. Celebre a conquista: Correr uma maratona exige grande dedicação. Aproveite para desfrutar do momento e, se desejar, experimente outras modalidades para diversificar o estímulo físico.

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Sugestão metodológica para as duas semanas a seguir a uma maratona:

A preparação para uma maratona, assim como a própria competição, sujeitam o organismo e as estruturas músculo-esqueléticas a um elevado nível de stress fisiológico e mecânico. Este esforço intenso pode abrir uma “janela de oportunidade” para o surgimento de lesões e infeções — incluindo situações aparentemente simples, como uma gripe —, uma vez que o sistema imunitário se encontra temporariamente fragilizado.

A recuperação deve, por isso, ser encarada com seriedade. Tanto o entusiasmo decorrente de uma maratona bem-sucedida, como a frustração por não ter alcançado o objetivo, podem levar a retomar o treino normal de forma prematura, aumentando o risco de lesão.

Nas semanas seguintes à prova, recomenda-se que a carga de treino seja substancialmente reduzida, privilegiando intensidades baixas (essencialmente em Zona 1). A corrida deve ser reintroduzida apenas três dias após a competição, limitada a sessões de 30 a 40 minutos, preferencialmente em percursos planos.

Sugestão para recuperação cuidada nas duas semanas seguintes à maratona:

  1. Realizar, pelo menos, dois dias de descanso absoluto por semana.
  2. Efetuar a primeira corrida apenas três dias após a prova.
  3. Correr, no máximo, duas a três vezes por semana, sempre em Zona 1, em terreno plano e, idealmente, em pisos suaves. Na 1.ª semana, limitar a duração a 30-40 minutos; na 2.ª semana, a 40-50 minutos.
  4. Integrar trabalho complementar de alongamentos e utilização de rolo de massagem três a quatro vezes por semana.
  5. Sempre que possível, incluir uma sessão semanal de massagem, sauna, jacuzzi e/ou pressoterapia.
  6. Incluir sessões ligeiras de ciclismo e natação podem ser boas alternativas pois permitem a prática de atividades sem impacto.
Autores
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António Santos